Muitos alertas e discussões sobre a (in)sustentabilidade dos atuais padrões de produção e consumo humano centram-se em temas como os transportes, a dependência energética de recursos fósseis, e a separação e gestão de resíduos. No entanto, a nossa alimentação, e a produção e o consumo de alimentos de origem animal em particular, têm sido associados a problemas ambientais muito significativos em todas as escalas, que incluem a degradação de terrenos aráveis, alterações climáticas, poluição atmosférica, poluição e destruição de recursos hídricos, e perda de biodiversidade.
Por João Graça
De facto, o século passado assistiu a um aumento massivo e sem precedentes da frequência e quantidade do consumo de alimentos de origem animal, materializando uma aproximação global aos padrões e estilos de vida dos países ocidentais industrializados. Uma das principais marcas desta mudança em larga escala caracteriza-se pelo aumento exponencial do consumo de carne e pela redução progressiva do consumo de cereais integrais, leguminosas e vegetais, à medida que as sociedades se tornaram mais abastadas. A título ilustrativo, em Portugal os indicadores de consumo de carne apontam para um aumento de mais de 400% entre 1961 (cerca de 23kg anuais per capita) e 2017 (cerca de 114kg anuais per capita), considerando estatísticas relevantes disponíveis a partir de várias fontes (FAO-United Nations; Instituto Nacional de Estatística).
Ao nível global, os níveis de produção de carne quadruplicaram nos últimos 50 anos, passando de cerca de 70 milhões de toneladas para mais de 300 milhões de toneladas por ano. As estimativas preveem que este número continue a aumentar exponencialmente nas próximas décadas, devido ao aumento da população mundial e a mudanças socioeconómicas com reflexo na procura e na oferta de alimentos de origem animal.
As consequências ambientais destas mudanças, à escala global, são alarmantes, especialmente numa altura em que a sustentabilidade dos sistemas alimentares é apontada como um dos principais desafios para o desenvolvimento humano. Vários estudos e meta-análises recentes, que examinaram milhares de unidades de produção em vários pontos do mundo, centenas de sistemas agrícolas e dezenas de produtos alimentares, têm reforçado que os alimentos de origem vegetal apresentam consistentemente maior eficiência na produção e menores impactos ambientais comparando com alimentos de origem animal. Estes estudos concluem ainda que a sustentabilidade dos sistemas alimentares implica mudanças profundas nos padrões de consumo, materializadas numa transição para dietas de maior base vegetal, para obter benefícios ambientais necessários a uma escala e alcance não atingíveis apenas por melhorias baseadas na produção.
Apesar da força destas conclusões, admite-se que poderá ser necessária uma profunda mudança social para atingir progressos significativos na redução do consumo de carne e numa alimentação de maior base vegetal. Sendo um tema recente, as evidências acerca dos processos psicossociais que afetam esta transição permanecem relativamente escassas. Alguns estudos apontam, ainda assim, para várias conclusões que podem ajudar a compreender em que medida estamos realmente dispostos a alterar os nossos hábitos.
Uma conclusão importante é que há diferentes tipos de consumidores – ou seja, não reagimos todos da mesma forma à perspetiva de reduzirmos ou substituirmos o consumo de carne. Cada vez mais pessoas estão recetivas a essa alteração de hábitos, muitas vezes por conhecimento e consciência em relação aos problemas de sustentabilidade ligados à produção de carne e aos benefícios de comer mais refeições atrativas e nutricionalmente adequadas de origem vegetal (para a saúde, para o ambiente, e para a diminuição do sofrimento animal).
No entanto, também há pessoas que não se sentem preparadas para fazer essa mudança. Entre os consumidores mais resistentes, alguns estudos têm observado a existência de um padrão de apego ao consumo de carne. Dentro deste padrão, os consumidores têm uma carga hedónica especialmente forte no consumo, ou seja, a carne é representada como uma fonte insubstituível de prazer na alimentação. Adicionalmente, a ideia típica de refeição para estes consumidores tende a incluir necessariamente uma porção de origem animal como eixo estruturante do prato. Face a uma refeição que não tem carne ou peixe podem sentir que a refeição é incompleta, e tendem a encarar o consumo de animais como um direito naturalmente conferido aos humanos na qualidade de espécie dominante. Há também, muitas vezes, sentimentos de dependência afetiva em relação ao consumo, no sentido em que a perspetiva de reduzir ou evitar o consumo de carne pode desencadear nestes consumidores sentimentos de perda e privação.
Estas evidências ajudam a compreender algumas reações menos entusiastas, e por vezes até defensivas, em relação às transições para uma alimentação de maior base vegetal. As pessoas com maior apego ao consumo de carne tendem a ver a mudança de hábitos como uma ameaça e a reagir reafirmando o consumo de carne como necessário para o ser humano, relativizando os impactos negativos, comparando estes impactos com outros problemas que são vistos como maiores ou mais importantes, ou sentindo que as alternativas não são realmente viáveis, acessíveis e atrativas. Isto ocorre de forma automática, quase inconsciente, e não de forma deliberada. De facto, o ser humano tende a reagir mal ao que possa ativar sentimentos de privação, muitas vezes em prejuízo da própria saúde e da sustentabilidade do planeta. Isto pode acontecer em relação ao consumo de carne, mesmo quando temos acesso a informação sobre as consequências negativas dos nossos hábitos.
Face a estes desafios, torna-se claro que é necessário criar soluções que vão ao encontro dos perfis, necessidades e expectativas de vários tipos de consumidores. Impõe-se, portanto, uma agenda de investigação integrada – mas diferenciada – que permita informar diretamente os caminhos de transição em larga escala para uma alimentação de maior base vegetal – identificando-se e superando-se barreiras, e reforçando-se os fatores potenciadores da mudança.
Este texto foi publicado originalmente no Blog "Ambiente, Território e Sociedade" do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Veja aqui a publicação original.
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